Para que serve o contrato de seguro D&O? — parte III

19/08/2019 / FONTE: Consultor Jurídico

Na primeira coluna alusiva à presente temática tivemos a oportunidade de, ainda que resumidamente, dissecar o risco que interessa ao contrato de seguro D&O, qual seja, a responsabilidade do administrador, fazendo-o fundamentalmente por meio do exame dos deveres de diligência e de lealdade.

A segunda coluna, por sua vez, ocupou-se das zonas de convergência e de divergência existentes entre a business judgment rule e o contrato de seguro em referência, formulando-se conclusão no sentido de que, nada obstante a proteção conferida por aquele instituto, o contrato de seguro permanece relevantíssimo, sobretudo considerando a severidade que, cada vez mais, caracteriza o regime de responsabilidade dos administradores no direito brasileiro.

Compreendidos os dois pontos acima, acredita-se que para esta terceira e última coluna [1] seja importante explicar, estruturalmente, como as coberturas comumente oferecidas pelo contrato de seguro D&O se apresentam para, a seguir, observar a cobertura destinada a reembolsar os gastos havidos pela sociedade (tomadora) para custear a defesa de seus executivos, vertendo o olhar, concomitantemente, aos contratos de indenidade.

Basicamente, este contrato de seguro oferece duas coberturas principais, quais sejam, (i) o custo de defesa e (ii) a indenização. Há, em adição, uma série de outras coberturas que, inclusive, motivam comentários da doutrina no sentido de que este seguro seria de natureza multirriscos ao invés de, como afirma o órgão regulador brasileiro, um típico seguro de responsabilidade civil. [2] Refiro-me, por exemplo, às coberturas para penhora on line, indisponibilidade de bens, crises emergenciais, abalos à imagem da sociedade (tomadora), custos com publicidade, marketing, entre outras.

As duas coberturas mencionadas — custo de defesa e indenização — apresentam-se por meio de três faces ou lados, denominados A, B e C, compondo a integralidade de uma proposta figura geométrica. A cobertura A refere-se ao custeio, pela seguradora, diretamente aos administradores, do quanto for necessário para a sua defesa/indenização. Em inglês, esta cobertura é conhecida pela ‘porção’ director’s and officer’s liability insurance; a cobertura B destina-se ao reembolso à sociedade, pela seguradora, das verbas empenhadas na defesa/indenização de seus executivos. É a chamada corporate reimbursement e a cobertura C, por seu turno, provê cobertura para a própria tomadora que, desta maneira, passa também à condição de segurada. Em inglês, trata-se da entity coverage.

No tocante à cobertura C, a generalidade das apólices brasileiras garante apenas os danos cujas reclamações estejam relacionadas aos valores mobiliários. No exterior, designadamente na Espanha e na Alemanha, esta cobertura vai além e, por exemplo, oferece garantia à tomadora para práticas trabalhistas indevidas. Nos Estados Unidos da América, a cobertura C em apólices destinadas a companhias fechadas é amplíssima. [3]

As três faces ou lados desta imaginária figura geométrica estruturam o contrato de seguro D&O como um todo, mas, vale ter em mente que, a bem da verdade, a cobertura que realmente importa aos administradores é a A, cujo pagamento será efetuado diretamente pela seguradora. As coberturas B e C, como se pôde observar, operam no interesse da sociedade (tomadora), nada obstante a B tenha por finalidade prover o reembolso à sociedade das verbas despendidas com a defesa/indenização de seus administradores.

Esta constatação revela uma fragilidade do modelo até então adotado pelo mercado segurador brasileiro em comparação com mercados seguradores mais desenvolvidos como, exemplificativamente, os norte-americano e o inglês.

No Brasil, as apólices de seguro D&O oferecem as coberturas A e B compondo um mesmo ‘pacote’. Se o limite segurado corresponder a 100 moedas e estas 100 moedas forem despendidas com reembolso à sociedade (tomadora) — isto é, cobertura B — nada remanescerá aos administradores a título de cobertura A. A cobertura C, se contratada, integrará este mesmo limite, talvez até mediante o estabelecimento de um sublimite, porém integrado ao limite maior já referido — as mesmas 100 moedas.

A depender da complexidade da reclamação formulada contra diversos administradores que, com certa naturalidade, desejarão defesas distintas, elaboradas por advogados igualmente distintos, muito provavelmente a cobertura A fará mais sentido do que a B, a revelar que o ‘pacote’ comumente observado no Brasil, num futuro próximo, enfrentará problemas decorrentes de possíveis conflitos de interesses entre os administradores e a sociedade (tomadora).

Comparativamente, Estados Unidos da América e Inglaterra apresentam os desenhos de suas apólices de maneira totalmente flexível. É comum observar a contratação da cobertura A com uma seguradora, e das coberturas B e C com outra seguradora. Como forma de gerar limites segurados mais robustos, contrata-se, como se observou, A com uma seguradora, B e C com outra seguradora e, ainda em adição ao limite contratado com a seguradora responsável pela cobertura A, as chamadas torres de seguros (insurance towers), somando limites em camadas justamente para a cobertura que, inclusive, remete ao nome deste contrato – director’s and officer’s liability insurance. [4]

O último aspecto que se deseja cobrir nesta terceira coluna, conforme antecipado anteriormente, diz respeito às semelhanças e diferenças existentes entre a cobertura B (corporate reimbursement) e os contratos de indenidade, objeto do parecer de orientação 38, de 25.9.2018, elaborado pela Comissão de Valores Mobiliários.

Em síntese, a CVM é favorável ao estabelecimento dos contratos de indenidade entre as sociedades reguladas e seus executivos, contanto que sejam observadas algumas premissas. Para fazer jus ao contrato de indenidade, o executivo não poderá ter agido de maneira gravemente culposa ou dolosa, não deverá ter cometido fraude contra a sociedade, não poderá aproveitar-se de oportunidade a ela dirigida, o que remete ao que explicitamos na primeira coluna, no concernente aos deveres de diligência e de lealdade. [5]

A depender dos valores necessários ao custeio da defesa de seus executivos, caberá à companhia levar o tema à deliberação assemblear, o que implicará na exposição de todos os fatos ao um número relativamente grande de participantes.

Em suma, entendemos que os contratos de indenidade e a cobertura B oferecida pelos contratos de seguro D&O podem apresenta-se em conjunto, o que tutelaria os interesses dos administradores de maneira mais ampla. Os contratos de indenidade não dispõem de franquia, isto é, participações obrigatórias mínimas por conta dos administradores; o seguro D&O, para a cobertura B, usualmente assim se estruturam. Os pagamentos pela própria companhia a seus administradores, escorados pelos contratos de indenidade, implicam em reduções de seu próprio caixa; o dispêndio pela seguradora, uma vez pago o prêmio pela sociedade (tomadora), não afetará o fluxo de caixa da companhia. Como se observou, a depender do montante necessário, o contrato de indenidade gerará uma exposição considerável do administrador, decorrente da deliberação assemblear. No contrato de seguro D&O a sistemática é totalmente privada e confidencial.

A reunião dos contratos de indenidade e dos contratos de seguro D&O efetivamente se apresenta como a maneira mais ampla de responder aos anseios dos administradores, decorrentes dos severos riscos aos quais estes se encontram cotidianamente expostos.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

 

Saiba mais em: https://www.cqcs.com.br/noticia/para-que-serve-o-contrato-de-seguro-do-parte-iii/

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